Quando Garrincha faleceu, há cerca de um ano, jornalistas desportivos redigiram lindas crônicas, lembrando acontecimentos, alguns sabidos, outros inéditos, ligados ao genial ponta-esquerda, morto no álcool e no abandono. Aquelas crônicas tinham umas com as outras um traço em comum: todos os jornalistas referiam-se ao ídolo caído como “meu amigo Garrinha”. Ney Bianchi, Cláudio Mello e Souza, Sandro Moreira, Luiz Carlos Barreto, Nilton Santos... onde estavam vocês, amigos fariseus, que permitiram que ele fosse levado como um passarinho? Amigos de anteontem? E, no entanto, foi a extrema solidão que o derrubou.
Dizem até que sua última esposa batia nele. Só e abandonado. Suas filhas, é verdade, sempre o amaram. Mas era aquele amor dolorido e silencioso, barrado pelo respeito que cria desnecessariamente algumas barreiras. E Garrincha tinha ainda a lhe remoer o remorso por haver abandonado Dona Nair e suas oito filhas pela cantora Elza Soares. Mas era uma mor que não ajudava como o impelia ao desencontro. Garrinha se tornara um inoportuno, virara um “pau de enchente”: não parava numa mesa, num lugar. Ouvia um pouquinho aqui, falava algo ali... Como um estranho no ninho de seus vizinhos, como um tronco que desce o rio na enchente. Daí o álcool, esse companheiro dileto, taciturno, que nada cobra, nada diz, nada lembra... Ainda se acreditava bom de bola. Tinha inveja de Pelé, de seu sucesso, de sua fama e fortuna. Com os ouvidos ainda zonzos pelos aplausos de até outro dia, não atinava compreender o vazio à sua porta. Frente à sua porta a grama crescia. Por isso o charlatanismo daquelas crônicas, imputando- se uma amizade oportunista em cima de um cadáver ainda quente e que agora, tardiamente, ninguém o queria morto.
Pois foi essa falsa amizade que o mimou, ninou e o levou a sentir, mais que ninguém a solidão. Separa-se um animal de seu bando e ele não comerá nem beberá, morrendo de inanição. Lembram-se dos negros africanos trazidos para o trabalho forçado, ou dos bugres “cristianizados” para abandonar seus hábitos e costumes. A mortandade era grande. Havia até uma doença específica - o banzo, uma saudade destrutiva, esse sentimento indescritível mas que nos assusta porque corroi, tal um carcimona, tal uma metástase. Pois quando o último amigo se despede na última porta do último bar que se fecha, não resta ao solitário outra saída que não o álcool. E este é o inicio do fim: beber sozinho.
CORREIO DO SUL-Criciúma-SET/1984.
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