Sobreviver à separação, após os ritos ordinários na Vara de Família, é, na verdade, uma ciência conhecida por poucos. Após o impacto alucinógeno da liberdade, sobrevém a depressão cansada pela realidade de não haver com quem compartilhar os problemas, as angústias e as alegrias do dia a dia.
Contudo a vida não para. E manter-se vivo, é, tão somente uma questão de disciplina e sabedoria. O começo de vida de um recém-separado é semelhante à sensação vivida por quem tenha sido obrigado a fugir de um cinema absolutamente lotado, pegando fogo. O pânico começa quando se entra na sala de audiência. A facilidade com que os advogados e o juiz da Vara de Família decidem o destino de um casamento choca pela simplicidade. Contudo, o que ocorre no interior de cada pessoa, em contraste com o rito sumário da dissolução das juras eternas, “até que a morte nos separe”, provoca profundas repercussões psíquicas.
“Uma sensação de desamparo e fracasso” (A.M.C., 47 anos). “O chão me faltou” (Suely R. P. 34 anos) “Um vazio na barriga, pressenti que ia vomitar” (C.I.L., 49 anos). Segundo o Dr. Gorki de Miranda Kern, psiquiatra, “a separação, mesmo quando consciente e saudável, sempre é traumática, ocasionando tensão para as pessoas envolvidas. O aparecimento de problemas clínicos e emocionais dependerá sempre da personalidade prévia de cada conjugue, ao vivenciar um rompimento de união”. Descasada há três anos, Marcela N. V. autentica a teoria do Dr. Gorki. Para ela, “é muito difícil descasar sem trauma. Você vê casamentos que se esvaziam, que se perdem, onde as pessoas se maltratam, mas que são mantidos, formalmente, por causa da solidão. O mais difícil, no mundo de hoje, é manter uma ligação a dois. Entretanto, quando a gente se separa, vive um período de luto, do qual só se sai cerca de um ano depois”. Apesar do trauma, o primeiro sentimento que se segue à oficialização, na Vara de Família, da dissolução dos laços do matrimonio e semelhante ao produzido pelas drogas: liberdade alucinógena, embriagante, eufórica. Para a mulher, a situação provocada pelo divorcio é quase diametralmente oposta à do casamento: basicamente educada para casar, a separação significa para ela, muitas vezes, a conquista da própria individualidade. Na maioria dos casos, a recém-descasada experimenta, pela primeira vez, o sabor da liberdade, apesar de não saber o que fazer com ela. Tem inicio, então, o grande desafio: o aprendizado da não dependência. Como a euforia produzida pelas drogas, a alucinação da aparente liberdade é seguida, normalmente, de uma forte crise depressiva. Na opinião do Dr. Gorki, “sinais e sintomas de enfermidade emocional estarão sempre na dependência de personalidade prévia das pessoas separadas (desunidas). Pode-se, inclusive, diagnosticar, prevenir e tratar estados psicopatológicos, motivados e consequentes às separações”.
O crack do descasado é marcado pela fase do alcoolismo, das companhias vulgares e pelo afastamento dos antigos amigos. O telefone não toca, a conta bancária apresenta fortes inclinações para o vermelho, os convites para um programa no fim de semana tornam-se mais raros do que petróleo na baía de Santos. E, para culminar, há a ausência palpável: a inexistência do outro adulto em casa, com quem partilhar as preocupações e as decisões. “Quando se vive sozinha, fica-se ansiando por uma companhia adulta, por qualquer pessoa para se conversar de noite, depois que os filhos vão deitar.” (E.C.P., 39 anos) “A solidão - afirma a Dra. Helena Miranda Scelza, psicóloga - é, possivelmente, a primeira fase em quase todos os casos. Em face de um estado de necessidade criado (falta do parceiro), estabelece-se um desequilíbrio psicológico agudo de intensa sensação de mal-estar. Esta sensação de mal-estar poderia ser refletida no sentimento de depressão. Em decorrência, eliminar a depressão torna-se uma necessidade mais imediata, podendo a pessoa recorrer a soluções de curto prazo, quase sempre ineficazes, pois são elaboradas em período crítico do equilíbrio emocional, como - por exemplo - a busca impensada de um parceiro substituto.”
“Entre mim e ele há uma dor, mas não há ressentimento... A barra da mulher que está sozinha é pesada. Já passei a fase de curtir a disponibilidade. Agora, já não estou achando muita graça em estar só, de chegar desacompanhada em um bar, numa festa. Sem falar nas coisas agressivas, estúpidas. Como a historia que aconteceu numa gafieira, onde eu tinha ido encontrar uns amigos. Comecei a dançar com um cara e ele me perguntou se eu era solteira. Disse que não, que era desquitada. Ele, imediatamente, propôs: ‘Olha, que tal a gente sair, ir para um hotel?’ É assim que a maioria pensa: desquitada é para ser comida.” (Laís, 29 anos, psicóloga.) Sempre que uma pesquisa a respeito de divorcio é realizada, invariavelmente os exemplos masculinos vêm à tona com mais frequência e facilidade que os femininos. No entanto, existem razões - pelo menos três -, para que as amostragens utilizem, constantemente, a mulher.
1) É maior o numero de mulheres descasadas do que homens (estes partem com mais decisão, para um segundo casamento): em 1976, segundo o IBGE, eram 1.192.460 mulheres e apenas 441.460 os homens separados;
2) as mulheres se expõem mais facilmente, têm menos reservas;
3) conforme a descoberta do cronista Carlinhos de Oliveira, a barra é muito mais pesada para as mulheres. Elevado à categoria de sócio de um bizarro Clube dos Machões, Carlinhos de Oliveira quis deixar clara sua posição, e, numa de suas crônicas, no Jornal do Brasil, disse o que pensava a respeito da mulher descasada: “Ele (o homem) foi eliminado, suas razões não são consideradas, dizem-lhe que ama errado que é opressor, que tem ejaculação precoce por mero egoísmo, que mantém sua companheira em cárcere privado e que, finalmente, só poderá voltar à cena, como co-protagonista, depois de diluir sua masculinidade, predominante, na porção feminina e reprimida que traz dentro de si... A mulher se separa ou porque não suporta a vida conjugal pura e simples, tal como os costumes e preconceitos a estruturam, ela rompe o contrato e proclama a sua independência... Ela não havia previsto o fardo adicional e inevitável contido na sua atitude. Esse fardo se chama solidão... (Ela) procura no botequim aquilo que o homem sempre procurou lá: ou o aniquilamento alcoólico, ou um companheiro agradável, atraente, que possa conduzi-la para um motel... Ela queria tudo do descasamento, exceto a única coisa que a esperava sem qualquer dúvida e que se chama, repetimos, solidão... Elas são o boi-de-piranha; sacrificado para que o resto do rebanho, as mulheres da próxima geração, possa atravessar serenamente o rio da vida... (...) A pergunta que se deve fazer à mulher descasada é esta: “Você esta achando aconchegante, ou preferia ter ao seu lado, na cama, um daqueles detestáveis porcos chauvinistas que você enxotou da alcova?” As respostas não se fizeram esperar.
Logo a seguir, o JB publicaria algumas respostas selecionadas (outras continuariam a sair diariamente): “Não acredito que alguém sairia de um casamento procurando a solidão, não acho também que ela seja inevitável. Ela pode acontecer e, na maioria das vezes, acontece, mas normalmente vem acompanhada de esperança, de vontade, de satisfação íntima. Solidão não é uma opção. Ficar só, sim, é uma opção, que não esta necessariamente ligada à solidão (Sandra). “Eu venho observando que, atualmente, as pessoas têm cada vez mais medo umas das outras, medo de mergulhar mais fundo no universo do outro!” (Silvana). Algo singular foi proposto: por que não reunir o cronista com as descasadas? Acertados os detalhes, deu-se o fato, alias de uma grande inutilidade, exceto por causa daquela que ficou conhecida como A Liberada de Ipanema.
Para começar, o encontro foi num hotel, não num lar, às 10 horas da manhã - hora em que a verdadeira descasada está na luta, muitas mulheres acompanhadas de seus parceiros e apenas três ou quatro desquitadas. Foi quando ela começou a falar. De inicio, tímida e atabalhoada, mas de uma coerência quase neurótica: “Eu quero saber o que vocês sabem da solidão. Digam, eu não vim aqui para ouvir idiotices. Eu vivo a minha solidão. Eu sou a mulher descasada que vai para o bar beber.” Carlinhos ficou extasiado: “Finalmente encontrei a liberada de Ipanema...” “É impossível - continuou ela - ser feliz, seja com um homem, uma mulher, a mãe ou irmã. Mas eu estou esperando e estou acontecendo todo o momento da minha vida. E sei que não vou errar. Não sou idiota, nem quero doutrinar ninguém, eu me preocupo com as pessoas, mas não vou fazer a cabeça de ninguém.” E arrematou: “Homem para mim é luxo, é uma beleza, vou tratar a pão-de-ló. E eu também quero ser a vedete desse homem.” Descasar, romper com o passado, é igual a optar. E a escolha de alguma coisa significa abandonar outra. Portanto, o aspecto doloroso da tomada de decisão é que, quando se opta, se está, ao mesmo tempo, abrindo mão de uma conquista. E nesse processo há sofrimento e sensação de perda. A verdade é que é muito difícil romper-se com o passado e colocar-se uma pedra em cima dele, definitivamente. Duvidas afloram: devemos tratar o ex-marido de que maneira? Como pai de nossos filhos, ex-marido ou como amigo? ‘Muitas pessoas continuam passando perto da casa do ex, onde sabem que poderão encontrá-lo, só para se magoarem’ Além do mais, fiscalizar o pai (ou a mãe) ausente, em busca de comportamentos errados, ou fazer perguntas às crianças após voltarem de um passeio são modos diretos de procurar por alguma coisa por onde atacar o ex-cônjuge, o que evidencia o fato de não ter sido dado o corte total. Muitas pessoas continuam passando de carro perto da casa do ex-companheiro/a, ou frequentando as festas e reuniões onde sabem que poderão encontrá-lo, a fim de se sentirem magoados.
Afinal, constantemente a relação é doentia, viciosa; e nenhum dos dois sabe como se libertar. “Morrer na peleja contra a opressão é melhor do que viver sem liberdade. Uma tal morte é a afirmação máxima de sua individualidade... Não haverá. Igualmente, alem do desejo inato de liberdade, uma aspiração instintiva à submissão? Se não há, como podemos explicar a atração que muitos encontram, hoje, na submissão a um chefe? (...) O sádico precisa da pessoa em quem ele manda, precisa muito dela porque seu próprio sentimento de força emana do fato de ele ser o senhor de alguém. E esta dependência pode ser inteiramente inconsciente” (Erich Fromm). Em que pese o medo sugerido pela separação, não há como fugir a um dado real: a vida começa exatamente com uma separação - o nascimento - e termina com outra, a morte. Entre esses dois extremos, o ser humano experimenta outras incontáveis separações, pois - como prova até mesmo a química inorgânica - nada que é vivo permanece igual de um minuto para outro. E essa mudança exerce um efeito especifico sobre a solidão de cada um. O Dr. Carl Roger, em seu livro Tornar-se Pessoa, chama a atenção para o fenômeno do crescimento pessoal após uma crise muito profunda: “Uma vida boa é um processo, não um estado. É uma direção, não um ponto de chegada. A direção que conduz a uma boa vida é aquela que foi escolhida por todo o organismo, quanto à liberdade psicológica para se mover em qualquer direção...
Por isso, tenho a convicção de que o progresso de conquista de uma vida boa não é um processo para os fracos. Envolve a ampliação e o crescimento de ter, cada vez mais, consciência das potencialidades pessoais. Implica coragem de ser. Significa mergulhar de corpo inteiro na correnteza da vida.” Deixando de lado as teorias acerca do rompimento, o palpável é que estar solteiro de repente, desestrutura a maioria das pessoas. E, para a Dra. Helena Scelza, mesmo sendo uma fase difícil, não deixa de ser uma questão de tempo para “calmamente se refazerem as ideias e procurar pessoas amigas, já que alguém de fora da situação possui sempre uma visão mais clara e mais racional”. Se a tristeza e o pesar são partes normais e integrantes do processo de separação, que não se sente melhor com um braço amigo em torno dos ombros ou com um ouvido compreensivo perto dos lábios? E como a solução para a solidão não esta em simplesmente fazer as malas e mudar de bairro, de cidade ou de país, a melhor solução é reestruturar o tempo, sobretudo para não se cair no alcoolismo, como adverte a Ira Tanner, em sua obra Solidão, o Medo do Amor: “O alcoólatra é alcoólatra porque não sabe como estruturar seu tempo. Enquanto os outros estão estruturando para ele - em casa ou no trabalho -, ele pode permanecer sobro. E o mesmo acontece com suas horas de recreação: quando as pessoas estão distraindo-o, ele não se sente entediado. Mas, ao final de tudo, quando o ultimo vendedor terminou de exibir suas mercadorias e o ultimo jogador deixou a quadra, ele se sente desorientado, novamente” Em que ocasião uma pessoa resolve mudar: Pela experiência de cada um, e pela informação dos outros, parece que é quando o sofrimento da situação chega a igualar o medo de mudar - e o risco é então tomado. Até quando a pessoa achar que pode viver dentro do argumento, ela continuará dentro dele. O conhecido psicólogo americano Eric Berne, inventor da analise transacional, já advertia: “Primeiro resolva seus conflitos, depois se analise.” Isso é muito importante, como também a recomendação de Kathryn Haller (Guia dos Pais Solteiros): “Salve-se primeiro, no lugar de ficar querendo salvar os outros. Suas oportunidades em termos de viver, amar e aprender são ilimitadas.” Muitas pessoas preocupam-se em fugir de seus sentimentos, do autoconhecimento e do seu desejo de adquirir auto- estima. Também estão presas ao falso conceito de quem se submete a uma análise psicológica esta mentalmente doente. E, no entanto, são justamente as pessoas que nunca se empenham na auto-estima e na reflexão que têm maiores possibilidades de ficarem mentalmente doentes. Para a Dra. Maria de Lourdes Vinhaes Gerk, psicóloga, o divórcio é uma situação de perda (de nome, de status, de afeto, de bens, etc.) com o consequente sentimento de frustração que pode conduzir à raiva ou à depressão.
Tentando catalogar soluções, é preciso haver:
1) Conscientização do fato, sem o que nenhuma elaboração se tornaria possível;
2) anulação da influencia de preconceitos sociais e parentais, num trabalho pessoal de aceitação de uma realidade circunstancial e que nada tem a ver com o que pensam ou pensariam “meus pais” (mesmo porque à época deles não havia divórcio no Brasil);
3) recuperação afetiva do próprio corpo - “com ele tenho que contar, pois dele irei sempre viver” -, exercício de bioenergética, aulas de dança, de ginástica, etc., podem ajudar muito; ‘A busca de um segundo parceiro é salutar, na medida em que cada pessoa tem o direito de reconstituir a vida’
4) aceitação do fato (o divórcio) sem jogo de culpas ou ressentimentos;
5) decisão de mudança - agora consciente da situação, responsável por mim, capaz de me aceitar e aceitar o outro como é, livre de deformação das minhas fantasias, posso decidir o que necessito e como fazer para alcançar uma vida construtiva e feliz -, novos amigos, desenvolvimento de novas habilidades (hobbies, passatempos), inicio de um trabalho ou intensificação de uma antiga ocupação.
Diversos homens, após a separação, em vez de ficarem em casa se lamentando, saem para a rua e estruturam seu tempo de maneira mais compensadora, passando a frequentar cursos noturnos que lhes permitam escolher novas alternativas de trabalho. Há ainda os que se matriculam em academias de ginástica a fim de resolver problemas de peso e melhorar o físico em geral. Na verdade, não são só as mulheres que se preocupam com a aparência após o divorcio. Ex-maridos solitários têm a tendência de melhorar a sua aparência ou, pelo menos, mostrar maior interesse por si próprios. Alguns homens fazem transplantes de cabelos ou se submetem a operações plásticas. Finalmente, a busca de um segundo parceiro é extremamente salutar, na medida em que cada pessoa tem o direito de reconstituir sua vida. Mesmo porque, num segundo casamento, as pessoas - agora mais experientes e não querendo ter novamente o peso de um novo fracasso - cedem com mais frequência e com maior sinceridade. Contudo, um segundo casamento precipitado é muito comum, principalmente no caso de pessoas que não suportam a solidão, que são incapazes de se desenvolverem autonomamente e precisam ter sempre ao lado alguém que resolva essa incapacidade, que se traduz numa compulsão de novas uniões. Essas pessoas, de inúmeras maneiras, acabam usando o parceiro para reforçar seus próprios mecanismos neuróticos - e facilmente entram num circulo 4 vicioso, que só poderá ser rompido no momento em que conseguirem enfrentar seus próprios conflitos, sem a necessidade de compensá-los nem de responsabilizar o companheiro por eles.
* ELE E ELA. Rio de Janeiro, abril de 1981
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