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Vanio Coelho

VANIO COELHO

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Vento Sul

Atualizado: 14 de ago. de 2019

Eis que surge o vento sul. Ataca por todos os lados, é frio, é grudento, é a prova de casaco, de lareira e de conhaque. Cada terra tem seu vento específico: os alísios abundam nos extremos do planeta; o bora é do Adriático; lestada vem do leste; minuano assusta no sul do Brasil; o mistral no sul da França; o siroco no Mediterrâneo; o terral vai da terra para o mar. E ainda tem o vento de porão, zéfiro, pampeiro, salvante, setentriâo, suestada, tramontana, austral, camacheiro, garbino, mata-vacas, levante... Pois em Floripa, que fica na ilha de Santa Catarina, temos quase todos.


É como que se aqui houvesse um segundo “Congresso de todos os ventos do mundo”, muito bem narrado, o primeiro, pelo conhecido narrador Joaquim Cardozo e que atacou o porto de Belém, conforme narrativa de um não menos narrador, Jorge Amado, recontando as desditas do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso, quando foi levado pelas circunstâncias a comandar um Ita do Norte. Foi assim: Comandante Aragão obteve diploma de capitão de longo curso de forma fraudulenta, presente de uns amigos de bordel que tinham autoridade no porto de São Salvador, na Bahia de Todos os Santos. Quando, por razões do destino, teve que comandar um Ita até Belém do Pará. Durante a viagem percebe a tripulação que Aragão nada entendia de cabotagem e foram preparando uma forra. Na chegada ao porto, perguntou a marinhada quantas amarras soltar: todas, respondeu o velho lobo, sabendo já que estava sendo vítima de uma galhofa.


E os ferros? Todos. E as manilhas? Todas. E as espias? Todas.


E nosso pobre nauta perdido saiu sob os olhares humilhadores do piloto, do imediato, do prático, dos tripulantes, dos passageiros e até dos nativos. Enterrou-se no álcool e numa pensão de quinta. Até que...


Até que todos os ventos do mundo resolveram fazer um congresso em Belém do Pará. Eram os ventos do inverno, os ventos do nordeste, o terral, o aracati, que ainda trouxeram todas as chuvas que dormiam nas florestas úmidas. E o resultado foi o afundamento de todos os navios, menos, é claro, o Ita do Aragão, impávido e “imexível” na sua cordoalha, amarras, âncoras. Aragão saiu-se dessa como herói e salvador.


Floripa, no inverno, passa a ser sede desses congressos transitórios, com um vento que, na madrugada, penetra até os ossos com seu frio molhado.


É assustador quando uiva, pela madrugada, nas quinas dos prédios.


É cruel nas madrugadas pois seu frio torna a saída para o trabalho uma desgraça.


É bem-vindo, pois carrega as nuvens pluviosas para mar adentro, limpando os céus.


Balança a árvore e derruba as folhas mortas do outono nosso, que é suave. Limpa as ruas que o nordeste sujou de areia. Alisa as dunas, lava as praias, fecha o aeroporto.


É terrífico, amado, presente e ausente. Inverte as ondas do mar, torna-o irritadiço e bravio, impede as caminhadas. Agita a areia, se seco; lava a cidade, se úmido.


É o vento sul. Nosso melhor poeta, Cruz e Sousa, já o cantara de forma insuperável: Velho vento vagabundo!/ No teu rosnar sonolento/ Leva ao longe este lamento,/ Além do escárnio do mundo


Pois foi sob esse vento que a maioria dessas crônicas foi escrita ao longo dos anos ilhéus.


Conheça a íntegra do poema:


VELHO VENTO


Cruz e Sousa


Velho vento vagabundo! No teu rosnar sonolento Leva ao longe este lamento, Além do escárnio do mundo.


Tu que erras dos campanários Nas grandes torres tristonhas E és o fantasma que sonhas Pelos bosques solitários.


Tu que vens lá de tão longe Com o teu bordão das jornadas Rezando pelas estradas Sombrias rezas de monge.


Tu que soltas pesadelos Nos campos e nas florestas E fazes, por noites mestas, Arrepiar os cabelos.


Tu que contas velhas lendas Nas harpas da tempestade, Viajas na Imensidade, Caminhas todas as sendas.


Tu que sabes mil segredos, Mistérios negros, atrozes E formas as dúbias vozes Dos soturnos arvoredos.


Que tornas o mar sanhudo, Implacável, formidando, As brutas trompas soprando Sob um céu trevoso e mudo.


Que penetras velhas portas, Atravessando por frinchas... E sopras, zargunchas, guinchas Nas ermas aldeias mortas.


Que ao luar, pelos engenhos, Nos miseráveis casebres Espalhas frios e febres Com teus aspectos ferrenhos.


Que soluças nos zimbórios Os teus felinos queixumes, Uivando nos altos cumes Dos montes verdes e flóreos.


Que te desprendes no espaço Perdido no estranho rumo Por entre visões de fumo, Das estrelas no regaço.


Que de Réquiens e surdinas E de hieróglifos secretos Enches os lagos quietos Revestidos de neblinas.


Que ruges, brames, trovejas Ó velho vândalo amargo, No sonâmbulo letargo De um mocho rondando igrejas.


Que falas também baixinho Lá da origem do mistério, Trazendo o augúrio sidéreo E certa voz de carinho...


Que nas ruas mais escusas, Por tardes de nuvens feias, Como um ébrio cambaleias Rosnando pragas confusas.


Que és o boêmio maldito, O renegado boêmio, Em tudo o turvo irmão gêmeo Do sonhador Infinito.


Que és como louco das praças Nos seus gritos delirantes Clamando a pulmões possantes Todo o Inferno das desgraças.


Que lembras dragões convulsos, Bufantes, aéreos, soltos, Noctambulando revoltos Mordendo as caudas e os pulsos.


Ó velho vento saudoso, Velho vento compassivo, Ó ser vulcânico e vivo, Taciturno e tormentoso!


Alma de ânsias e de brados, Consolador companheiro Sinistro deus forasteiro D'espaços ilimitados!


Tu que andas, além, perdido, Tateando na esfera imensa Como um cego de nascença Nos desertos esquecido...


Que gozas toda a paragem, Toda a região mais diversa, Levando sempre dispersa A tua queixa selvagem.


Que no trágico abandono, No tédio das grandes horas Desoladamente choras, Sem fadigas e sem sono.


Que lembras nos teus clamores, Nas fúrias negras, dantescas, Torturas medievalescas Dos ímpios inquisidores.


Que és sempre a ronda das casas, A gemente sentinela Que tudo desgrenha e gela Com o torvo rumor das asas.


Que pareces hordas e hordas De hirsutos, intonsos bardos Vibrando cânticos tardos Por liras de cem mil cordas.


Ó vento languido e vago, Ó fantasista das brumas, Sopro equóreo das espumas, Ó dá-me o teu grande afago!


Que a tua sombra me envolva Que o teu vulto me console E o meu Sentimento role E nos astros se dissolva...


Que eu me liberte das ânsias De ansiedades me liberte, Pairando no espasmo inerte Das mais longínquas distâncias.


Eu quero perder-me a fundo No teu segredo nevoento, Ó velho e velado vento, Velho vento vagabundo!

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